0
ARCH+ news

São Paulo

Raquel Rolnik //

Com 17 milhões de habitantes, a Região Metropolitana de São Paulo é hoje uma das cidades-mundo do planeta. Isso significa que, ultrapassando seus próprios limites físicos – 900 quilômetros quadrados de área urbanizada, em 39 municípios –, a aglomeração urbana ocupa hoje uma área que vai muito além disso, atingindo pontos distantes do país, do continente, do mundo.

É preciso entender como se chegou a esse ponto, reconhecendo que a cidade hoje é produto de milhões de ações individuais e coletivas das gerações que nela investiram seus projetos. Longe de ser caótico, esse processo foi diretamente influenciado por opções de política urbana, tomadas em períodos fundamentais de sua história. É sobre esses momentos e essas decisões que vamos nos debruçar nas próximas páginas, mostrando que o que parece ser uma nau desgovernada corresponde na verdade aos sucessivos modelos de cidade e de gestão urbana construídos para administrar um lugar que em cem anos (entre 1854 e 1954, data de seu quarto centenário) passou de 30 mil para mais de 2,5 milhões de habitantes, chegando a 10 milhões nas décadas seguintes e transformando-se na principal cidade de um país marcado pela extrema concentração de renda. O texto se organiza em ordem cronológica, iluminando momentos decisivos da história da cidade, que definiram configurações presentes até os nossos dias.
São Paulo 1881
São Paulo 1897
 
 
São Paulo, 2001

1. Da Vila Bandeirante à Cidade do Café
Vila de São Paulo foi fundada em 1554, por padres jesuítas que, a partir de São Vicente (no litoral), subiram uma escarpa densamente recoberta pela Mata Atlântica – a Serra do Mar –, guiados por índios tupi-guaranis. No planalto, fundaram um colégio sobre uma de suas colinas, foi da Vila de São Paulo que desde o século 17 partiram “entradas e bandeiras”, expedições de exploração do território com o objetivo de escravizar índios, tomar posse de terras e procurar minérios. São Paulo bandeirante: desde sua fundação a marca da cidade é sua fronteira aberta, por onde entram os forasteiros do país e do mundo e de onde se sai para conquistar territórios.
Até o início do século 19, São Paulo era predominantemente habitada pela mistura de portugueses e índios, e a língua mais comum era o tupi-guarani. Introduzida inicialmente no vale do Paraíba, por volta de 1850, a cafeicultura começou a ocupar o oeste paulista. A cultura cafeeira – e sobretudo os capitais que ela gerou – transformou totalmente a cidade.

Por ser o primeiro ponto no planalto a partir do porto de Santos, a cidade estabelecia a conexão entre as regiões produtoras, o porto e a capital do país. Assim, seus vales, a partir de 1867, ano em que foi implantada a primeira ferrovia na cidade, interligando Santos a Jundiaí, foram sendo atravessados por ferrovias. Entroncamento ferroviário e sede de uma província em franca expansão econômica no momento de instauração do regime de trabalho assalariado e da República, é aí que a cidade passa por uma grande transformação urbanística, econômica, étnica e política.


São Paulo, 1900

São Paulo, virada do século: uma cidade que rapidamente acumula capitais e atrai um intenso fluxo imigratório europeu: italianos, portugueses, espanhóis, sírios e libaneses, judeus e japoneses. A cidade na virada do século já contava com uma população de 250 mil habitantes, dos quais mais de 150 mil eram estrangeiros. Nesse momento de intensos fluxos imigratórios, a cidade viveu seu primeiro surto industrial, baseado principalmente nas indústrias têxteis e alimentícias, que ocuparam as várzeas por onde passavam as ferrovias, constituindo as grandes regiões operárias de São Paulo: as orlas ferroviárias no leste, oeste e sudeste. Nesses bairros – Lapa, Bom Retiro, Brás, Pari, Belém, Mooca, Ipiranga – se formaram as primeiras colônias de imigrantes. Esse momento correspondeu também ao primeiro grande surto de “urbanidade” na cidade, quando se implantaram os serviços de água encanada, o transporte por bondes elétricos, a iluminação pública, a pavimentação das vias. A política de implantação desses “melhoramentos” desde logo foi distinta em cada um dos espaços da cidade.

No Centro Histórico, uma primeira grande reforma urbanística, com a implantação de um projeto do francês Bouvard, no vale do Anhangabaú. O Teatro Municipal e sua esplanada sobre o vale, o viaduto do Chá e o alargamento de ruas e vielas coloniais configuraram a “cidade do triângulo” (São Bento/ Direita/15 de Novembro) e o princípio da ocupação do chamado Centro Novo (região em torno da praça da República) com boulevards, jardins públicos, cafés e lojas elegantes e equipamentos culturais, expressão da mudança radical da identidade proposta para a cidade por sua nova elite dirigente. Enquanto isso, nos bairros populares, a paisagem misturava as chaminés de fábrica à alta densidade das vilas e cortiços, e a infra-estrutura urbana se resumia praticamente ao bonde. É nesse momento que se constrói um dos primeiros fundamentos da ordem urbanística que governa a cidade, presente em alguma medida até nossos dias: uma região central investida pelo urbanismo, destinada exclusivamente às elites, contraposta a um espaço puramente funcional, normalmente “sem regras”, bem fora desse centro, onde se misturam o mundo do trabalho e o da moradia dos pobres.


Várzeas e volinas

A grande transformação que ocorreu na cidade do café foi, sem dúvida, a configuração de uma segregação espacial mais clara: territórios específicos e separados para cada atividade e cada grupo social. Isso se deu por meio da constituição dos bairros proletários e dos loteamentos burgueses, da apropriação e reforma do centro urbano pelas novas elites dominantes e da ação discriminatória dos investimentos públicos e regulação urbanística.

Em 1879, dois alemães, Glete e Nothman, compram uma chácara e abrem ali ruas espaçosas e alamedas arborizadas e grandes lotes. Assim nascia o bairro dos Campos Elíseos: um Champs-Elysées paulistano, que definiria o modelo de bairro aristocrático, exclusivamente residencial e de alta renda. Em 1890, é a vez do recém-aberto bairro de Higienópolis concentrar os palacetes mais elegantes da cidade. Em seguida, a avenida Paulista, inaugurada em 1891.

Em 1894, Joaquim Eugênio de Lima, incorporador da Paulista, consegue aprovar uma lei exclusivamente para a avenida, obrigando as futuras construções a obedecer a um afastamento de dez metros em relação à rua, bem como dois metros de cada lado, a serem ocupados por “jardins e arvoredos”. Dessa forma, por meio de leis que definem um modo de construir ao qual corresponde clara e exclusivamente um segmento social, garantiu-se ao longo da história da cidade que os espaços com melhores qualidades urbanísticas fossem destinados a esses grupos, apesar da imensa pressão representada permanentemente pelo crescimento populacional das massas imigrantes.

Nesse episódio se esboça o fundamento de uma geografia social da cidade, da qual até hoje não se conseguiu escapar. O setor sudoeste, que foi desenhado a partir do percurso Campos Elíseos/Higienópolis/Paulista e depois se completaria com os loteamentos da Companhia City nos Jardins, configura uma centralidade da elite da cidade, o espaço que historicamente concentra valores imobiliários altos, o comércio mais elegante, as mansões e apartamentos mais opulentos, o consumo cultural da moda e a maior concentração de investimentos públicos.


Um primeiro modelo liberal

Durante toda a República Velha (1890-1930), as decisões políticas sobre a gestão municipal tinham como interlocutores apenas a elite paulistana, diminuta parcela da população que votava para eleger a Câmara Municipal e, a partir de 1911, o prefeito da cidade. Ao mesmo tempo que a concentração de investimentos em “melhoramentos” e a legislação vai alinhando os territórios da riqueza, ela vai também delimitando aqueles onde deverá se instalar a pobreza.

Dessa maneira se demarcava uma área “regulada” da cidade, onde a habitação popular não poderia acontecer, ao mesmo tempo que se configurava, fora do perímetro urbano, uma zona de obscuridade, sobre a qual o olhar do poder municipal não vigorava. Na lógica da cidade dos trilhos, a malha das linhas de bonde e as estações de trem definiam os limites de uma urbanização densa e concentrada. Assim, até o final dos anos 20, apesar de desigual e dividida, a cidade mantinha ainda algumas relações básicas com sua geografia natural e possuía uma malha urbana relativamente contínua e compacta, servida por transporte público na maior parte de sua extensão.


2. A crise dos anos 20

A cidade nos anos 20 vivia um momento especial: durante as décadas de expansão da cultura cafeeira na província (e depois no estado), São Paulo foi o maior ponto de atração de capitais e população de todo o país. Com isso, na década de 1930 a cidade ultrapassaria a marca de 1 milhão de habitantes, tornando-se uma das metrópoles cosmopolitas da América.

No contexto da Primeira Grande Guerra (1914-8), em virtude do colapso das linhas de comércio internacional, São Paulo assistira a um grande surto de crescimento industrial, iniciando o processo de substituição de importações, voltado para a produção nacional de bens de capital e consumo para o mercado interno. As decorrências dessa industrialização em larga escala foram, além do aparecimento de um proletariado urbano, um intenso crescimento demográfico Ao findar a segunda década do século 20, o quadro na cidade era de escassez, especulação, inflação.


Crise da Light

Enquanto a cidade se adensava e expandia, a partir de 1920 o investimento na ampliação da rede viária e no aumento do número de bondes deixa de ser prioritário para a Light. Para a companhia, o crescimento espetacular da indústria paulistana ampliava seu mercado consumidor de energia elétrica, justificando seu ousadíssimo projeto de construção da usina Henry Borden. Considerando todos esses fatores, a Light propôs renovar seu contrato com o governo da cidade, mas sugerindo a implantação de metrô na região central, que se articularia a uma rede expandida de bondes de superfície com calhas exclusivas, e a integração do sistema bonde-ônibus, incorporando assim os quase 200 ônibus em circulação na cidade.


Prestes Maia e o modelo rodoviarista

1929 “Plano de Avenidas” O uso de ônibus a diesel tornaria acessíveis – em termos de transportes – os bairros na periferia. configura-se na cidade a opção pelo modelo rodoviarista do transporte sobre pneus. Nove de Julho, 23 de Maio, Radial Leste: todas fazem parte do plano que acabou por definir, até os dias de hoje, a estrutura urbana básica da cidade. Loteamentos longínquos, dispersos e sem infra-estrutura, uma cidade de baixíssima densidade comparada ao padrão anterior concentrado em torno dos trilhos: esse novo padrão colocava em xeque toda a lógica de investimentos públicos e provisão de serviços.


Ilegalidade e pacto territorial

A comparação das plantas da cidade e dos dados populacionais de 1914 e 1930 demonstra um processo claro de expansão horizontal e desadensamento populacional. Se em 1914 a área ocupada é de 3.760 hectares (1 ha = 10 mil m2, ou aproximadamente um quarteirão) e a densidade é de 110 hab./ha, em 1930 a área ocupada será de 17.653 hectares e a densidade, de 47 hab./ha. A partir daí a densidade se mantém praticamente constante, em torno de 50 hab./ ha até a década de 1970, e a cidade se espalha vorazmente, engolindo morros e várzeas e conurbando com municípios vizinhos, quase sempre por meio de loteamentos irregulares e casas autoconstruídas, sem aprovação da prefeitura.

Esse é o passo fundamental para estabelecer uma nova ordem jurídica, na qual a clandestinidade ganha o estatuto de uma extralegalidade, dependente da intermediação do Estado – no caso, da municipalidade – para ser reconhecida e, assim, ganhar o estatuto legal e poder inserir-se na órbita de obrigações de responsabilidades públicas. A velha ordem não se transforma para incorporar outras formas de ocupação do espaço: na verdade, apenas tolera – seletivamente – exceções à regra que, ao serem reconhecidas, são “contempladas” com o direito de receber investimentos públicos em infra-estrutura e serviços urbanos.


3. São Paulo Metrópole

Durante a expansão urbana dos anos 60 e 70, ocorre a conurbação com os municípios da atual região metropolitana, sobretudo Osascove Taboão da Serra (a oeste), Guarulhos (a leste) e o ABC (a sudeste). A cidade de São Paulo, que naquele momento já é o centro industrial mais importante do país, passa a ser também o mais importante centro financeiro e a maior cidade brasileira.


São Paulo mineira, nordestina, interiorana, estrangeira

A imensa pujança econômica da cidade atrai migrantes de todos os pontos do país. Nasce a São Paulo dos “baianos”: as décadas de 1950 a 1970 vão ser marcadas pela diminuição da imigração estrangeira e por um incremento na migração interna, principalmente de Minas Gerais e da região nordeste do Brasil e do próprio interior do estado de São Paulo, após a grande crise da cafeicultura paulista de 1929. Em 1970, quase 20% da cidade tem origem mineira ou nordestina e os 380 mil estrangeiros se repartem em mais de 70 nacionalidades.

A sedução fácil de uma teoria de convivência harmoniosa e divertida é negada, entretanto, pela geografia socioeconômica das origens. Se, no princípio do século, era estrangeiro o território popular e genuinamente brasileiro o centro da cidade, hoje a periferia é nordestina. Quanto mais distante e precária, mais negra, mulata e migrante. E o centro, outrora claramente quatrocentão, vai também ter outro destino.


Novo Centro e Avenida Paulista

Do ponto de vista urbanístico, os anos 70 marcaram o deslocamento do centro de consumo das elites, da cidade do Centro Histórico em direção à avenida Paulista e Jardins. A formação de um novo centro só acontece durante o milagre brasileiro (1968-73), quando um poderoso subcentro se implanta em torno da avenida Paulista. A partir de meados dos anos 60, pela primeira vez na história da cidade, o metro quadrado do Centro Histórico deixa de ser o mais caro. Paradoxalmente, tudo isso ocorre enquanto um dos investimentos mais importantes e custosos da história da cidade, o metrô, afirma a centralidade daquele lugar, ao fazer cruzar ali as duas primeiras linhas da futura rede.

Reforçando uma circulação radioconcêntrica, o metrô acabou atraindo para a área central os grandes terminais de ônibus e ocupando a área central com megaáreas de trasbordo. Nesse momento que se implantam os calçadões na área central, transformando as principais ruas em áreas exclusivas de pedestres. Assim, desenhou-se para a área central um destino de máxima acessibilidade por transporte público e restrição para os automóveis, no momento em que as elites e classes médias da cidade se confinavam definitivamente dentro de seus carros, deixando de ser pedestres. Estavam lançadas as bases para uma popularização do centro e seu abandono progressivo pelas elites.

Um número expressivo de edifícios modernos, inspirados nos princípios funcionalistas e afirmando uma arquitetura nacional, marcava a nova paisagem da avenida Paulista a partir dos anos 50. A inauguração do Conjunto Nacional, primeiro edifício de uso misto (comercial e habitacional) na Paulista, em 1956, anunciava a liberação do uso comercial e transformava uma de suas fronteiras – a rua Augusta – em importante eixo comercial. A ocupação cultural da Paulista-Augusta foi a vanguarda de um movimento que, nos anos 70, ali plantou, em estilo internacional, os poderosos do milagre econômico: grandes empresas, bancos e sindicatos patronais.


Exclusão territorial

A política habitacional praticada pela Cohab durante as décadas de 70 e 80 foi a construção de imensos conjuntos uniformes e exclusivamente residenciais nas extremas periferias, marcando sua posição limítrofe em relação à cidade existente e segregando de forma explícita e violenta a população ali residente: Itaquera 1, 2, 3 e 4 (35 mil moradias e 165 mil habitantes), Cidade Tiradentes.

Porém o impacto mais devastador desse modelo é, sem dúvida, a radical exclusão territorial a que foram condenados os moradores da extrema periferia – guetos de baixa renda, educação precária, desemprego alto, serviços urbanos deficientes, radicalmente fora dos locais onde circulam as oportunidades. Não há dúvida de que a bomba-relógio da violência, que explodiu nos anos 90 na cidade, guarda um nexo forte com a estrutura urbana que acabamos de descrever. O impacto da implantação desses conjuntos na zona sul do município foi ainda mais grave: a construção do conjunto Bororé, no Grajaú, em 1976, levou mais de 13 mil moradores para a área recém-definida como de “proteção aos mananciais”.

Entretanto, no mesmo momento em que se definiam as regras de proteção, a política urbana e habitacional do município apontava para o contrário: consolidava o pólo industrial da zona sul e a expansão da centralidade a sudoeste (reforçada pela priorização dada à linha norte–sul do metrô, que iniciou suas operações em 1975), gerando uma demanda habitacional na periferia sul em função do aumento da oferta de empregos na região. Hoje, é na zona sul que se encontra o maior número de favelas e de loteamentos irregulares da capital; e as represas, assim como os rios, têm a qualidade de suas águas bastante comprometida.


A gestão metropolitana e a era dos planos

Em 1971, pela primeira vez se aprova um plano global da cidade que procurava estabelecer diretrizes para a totalidade das políticas municipais: desenvolvimento urbano, econômico e social, organização administrativa da prefeitura, uso do solo, controle da poluição ambiental, sistemas de circulação e transportes, áreas verdes. O então chamado Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) previa que no futuro ano de 1990 São Paulo seria uma megalópole de 20 milhões de habitantes, formando um contínuo com as cidades vizinhas, cortada por uma malha quadrangular de vias expressas, sem cruzamentos, que permitiriam aos carros trafegar a uma velocidade de 100 quilômetros por hora no perímetro urbano.

Uma nova figura política, a “Região Metropolitana de São Paulo”, era criada por decreto federal, em 1973. A Região Metropolitana de São Paulo, ou Grande São Paulo, foi definida então como um conglomerado de 37 municípios (hoje 39) ocupando uma área de quase 8 mil quilômetros quadrados com quase 8,5 milhões de habitantes – 10% da população do país, em apenas 0,5% do território nacional. Desde sua criação, possui um órgão de planejamento (Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande São Paulo S.A. – Emplasa), que faz parte da estrutura do governo estadual de São Paulo.

A era dos planos inaugura na cidade uma prática absurda que permanece até nossos dias: por um lado, produzir planos e projetos que reiteram padrões, modelos e diretrizes de uma cidade produzida racionalmente, que ninguém conhece; por outro, negociar o destino da cidade, dia a dia, com os interesses econômicos, locais e corporativos pelos instrumentos da política real, que são o loteamento de espaços de poder para grupos políticos e a sustentação desses mesmos grupos por meio de relações incestuosas com empreiteiras e prestadores de serviço. Nenhum dos grandes planos para São Paulo conseguiu pautar minimamente a ação municipal. Seu caráter tem sido profundamente tecnocrata e absolutamente distante dos conflitos reais da gestão urbana, prevalecendo a livre negociação da política setorial.


4. São paulo hoje: megacidade global?

Embora a participação relativa do município na produção industrial do estado e do país tenha diminuído, a cidade de São Paulo é ainda um grande e dinâmico centro industrial, e não a suposta “metrópole terciária” que algumas análises no início dos anos 90 pretendiam antever. A perda real de participação do município na atividade industrial tem-se dado em favor de outros municípios da Região Metropolitana e cidades do interior, num raio de 150 quilômetros da capital, especialmente as regiões de Campinas e São José dos Campos Se é verdade que a indústria não desapareceu, também é certo que mudou radicalmente, com grandes reflexos não apenas sobre a estrutura de empregos, como também sobre a organização espacial da cidade: algumas grandes e médias indústrias estão deixando a localização junto aos grandes eixos ferroviários e rodoviários (antiga ferrovia Santos–Jundiaí e rodovias Anchieta e Presidente Dutra), e milhares de pequenas fábricas se misturam com outros usos no tecido urbano, ocupando até mesmo áreas da extrema periferia. Na nova territorialização da produção em São Paulo a era das grandes plantas industriais, com enormes pátios de carga e descarga e áreas de armazenamento, e das multidões de operários uniformizados parece ter chegado ao fim.


Desemprego

A nova economia urbana produz efeitos contraditórios sobre o espaço da cidade: por um lado, vai sendo esvaziada a fissura interna que caracterizou a cidade industrial ao traçar uma barreira fabril entre a periferia precária, norte-oeste-leste-sudeste, e a cidade rica e equipada no sudoeste; por outro, à medida que as indústrias saem da cidade, os bairros onde estas se localizavam podem ser repovoados com usos residenciais, comerciais e de lazer. Entretanto, os novos megainvestimentos terciários, como shopping centers e hipermercados, que estão ocorrendo nessas áreas mais antigas têm produzido uma fragmentação do tecido urbanosocial, desenhando verdadeiros enclaves urbanos e muitas vezes tendo impacto negativo sobre os centros tradicionais de compras e serviços.


Shoppings, Hipermercados e Robocops

BIG, MAKRO, EXTRA: esses equipamentos se multiplicaram e acabaram imprimindo uma lógica totalmente nova aos hábitos de consumo paulistanos. O novo pólo empresarial, constituído pela região da avenida Luís Carlos Berrini e da marginal Pinheiros, nada mais é do que uma extensão sul do velho vetor sudoeste. Pode-se afirmar, generalizando, que, do Centro Histórico à região da Paulista e dali para a Faria Lima- Berrini, trata-se de uma história de perda progressiva de qualidade urbanística. Dos jardins e boulevards de Bouvard, ou calçadas de 15 metros e mistura de usos da Paulista, aos 90 centímetros de calçada e monofuncionalidade da Berrini, ganharam o automóvel e a primazia do privado, perderam o pedestre e a dimensão pública do espaço urbano.

A entrada – dispersa e fragmentada – das novas formas comerciais na periferia não rompe com a dualidade tão constitutiva da cidade, mas tão-somente a repõe, de forma fractal, já que até hoje nada foi feito para integrar e desenvolver (e não dilacerar e substituir) o tecido socioeconômico preexistente.


Transição demográfica?

Enquanto os bairros centrais diminuíram sua população em termos absolutos, as periferias registraram os maiores níveis de crescimento populacional. Na última década, acelerou-se o motor da exclusão. Hoje são 2 milhões os favelados na cidade, representando um recorde histórico de 20% da população. É evidente que, numa cidade dividida entre a porção legal, rica e com infra-estrutura, e a ilegal, pobre e precária, a população que está em situação desfavorável acaba tendo muito mais dificuldades no acesso a oportunidades de trabalho, cultura ou lazer.


Violência

O fantasma da violência afeta principalmente a convivência urbana e impessoal; produz, assim, o enclausuramento das classes média e alta em seus condomínios fechados e shopping centers, abandonando progressivamente o espaço das ruas ou privatizando-as por meio de vigilância ostensiva. O espaço público significa para a população cada vez mais o espaço da bandidagem, do perigo, do abandono. Assim, a violência também acaba contribuindo para o esgarçamento do tecido urbano-social.


São Paulo, 2001

Critério utilizado pela ONU, a marca de 10 milhões de habitantes serve para definir o “clube” das megacidades do planeta, duas delas no Brasil: Grande São Paulo e Grande Rio, limitando-se à dimensão meramente quantitativa. Contudo, a dimensão “mega” de São Paulo produz determinadas qualidades na relação entre a população e os territórios da cidade. Por ser megacidade partida e excludente, com benesses concentradas e precariedades largamente distribuídas, São Paulo impõe uma “ditadura do movimento” no cotidiano da população que utiliza ou frui a cidade, a partir de um ir-e-vir constante de carros, ônibus, metrôs, vans, trens, pés, carroças. Estar em São Paulo é estar sempre indo ou voltando para/de algum lugar.

Os padrões urbanísticos que se configuraram a partir da potente máquina de exclusão territorial definiram uma cidade dualizada, expressa na imagem centro/periferia. O aumento vertiginoso das favelas, dos condomínios fechados, shopping centers e centros empresariais ao longo das décadas de 80 e 90 revela essa fragmentação socioterritorial da cidade, que compartimentaliza os espaços, promovendo uma vida urbana confinada em geografias controladas, protegidas ou vulneráveis, de alta e baixa renda.

No limite, trata-se da dissolução da São Paulo de fronteiras abertas, que abria a possibilidade concreta do desenvolvimento humano individual e coletivo por meio da intensidade das trocas e interações sociais. As fronteiras internas, que agora assumiram a materialidade física dos muros, grades e guaritas, sitiaram a cidade e confinaram os cidadãos a uma vida apenas entre familiares e iguais. A cidade fractal é assim uma anticidade, que se debate para estabelecer bases de novos padrões de urbanidade, fundados na negação da heterogeneidade, que paradoxalmente é sua verdadeira fonte de potência. Tais designações de São Paulo, no entanto, não tocam no dilema essencial de seu destino. Sua história, como pudemos apontar, tem a marca das decisões de política urbana tomadas em momentos cruciais, com maior ou menor participação de seus moradores. não há “problema” urbano ou marca urbanística na cidade que não esteja intimamente associado a um modo de governá-la.

A destruição final – ou a reconstrução, em novas bases – de sua geografia socioambiental permanece, portanto, uma possibilidade em aberto.

Extraído de: Publifolha (Raquel Rolnik) São Paulo 2001