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Urbanização do complexo Paraisópolis a materialização da cidadania

Héctor Vigliecca //

LEITURA URBANA

A cidade de São Paulo tem quase um milhão de seus habitantes morando em favelas e aproximadamente dois milhões em urbanizações irregulares. Desde os anos setenta estas são as áreas do território metropolitano com maior dinâmica e crescimento, pelo qual a informalidade e a irregularidade hão deixado de ser exceção para constituir-se em regra. Apesar da insistência na consideração da pobreza urbana como bolsões de exceção na cidade, hoje a realidade nos mostra que o crescimento das áreas informais supera amplamente o das áreas formais, fenômeno que se repete na maioria das metrópoles da América do Sul e Central.

Localizado à sudoeste do rio Pinheiros, o bairro do Morumbi é um dos mais exclusivos da cidade de São Paulo. Nele coexistem enormes residências particulares, condomínios fechados de luxo com sofisticados sistemas de segurança, edifícios de alto padrão com parques privados e inclusive a própria sede do Governo Estadual.

Paradoxalmente, em pleno Morumbi, localizado na borda de uma das mais valorizadas zonas da cidade está também um dos maiores assentamentos irregulares da cidade: a favela de Paraisópolis. Implantado numa topografia com declividades que chegam a 35%, com presença de vários córregos abertos, este conglomerado de construções de um a três pavimentos possui uma população de aproximadamente 82.000 habitantes, dos quais 46.000 são menores de 14 anos.

Morumbi\Paraisópolis é uma caricatura de São Paulo, do Brasil e da América em termos mais gerais, o paradigma da cidade dual, de duas situações que coexistem, que colidem, mas que se ignoram mutuamente, embora exista a consciência que uma depende da outra. A favela é lida então como um “tecido estranho” localizado na cidade. Em parte devido à sua característica morfológica particular, mas também pela inexistência de elementos de conexão legíveis com seu entorno, produto tanto do enclausuramento de seus moradores quanto da exclusão por parte desse mesmo entorno.

A favela em quase sua totalidade está implantada sobre terrenos particulares, com exceção dos córregos que por legislação são de propriedade pública. O processo de ocupação obviamente não respeitou a base fundiária precedente, gerando situações onde num terreno original se encontram implantados conjuntos de moradias ou grupos de casas que não respeitaram os traçados originais.

A área central da favela possui uma condição particular, ou seja, está assentada sobre uma malha urbana previamente definida com ruas e infraestrutura completas, esta condição que não é comum em outras favelas estabeleceu para os assentamentos das “bordas” dos quarteirões (100mx200m) um modus operandi de uma formalidade inesperada que foge aos padrões da favela tradicional em relação ao compromisso entre a estrutura pública e as ocupações privadas; esse compromisso se apresenta na minúcia de detalhes construídos, nos investimentos privados e na manifestação da diversidade de tipologias e usos. No entanto, e em contraposição, no interior destes mesmos quarteirões acessando através de vielas internas, sempre de geometria inadequada e em geral sem continuidade os assentamentos vão se deteriorando gradualmente na medida direta em relação ao distanciamento da estrutura pública existente, característica própria da urbanização informal.

Já as ocupações informais que se estendem além das áreas centrais se sobrepõem às possibilidades da topografia mascarando a visibilidade da geografia, elemento de identidade do local.

Sobre essa leitura urbana e arquitetônica onde se revela uma intencionalidade espontânea de compromisso com a cidade é que definimos o ponto de partida de nossa proposta. No entanto, diante de tal complexidade e diversidade que cada lugar urbano crítico apresenta é o imediatismo de ações voltadas às questões sobre construções em áreas de risco (desabamentos, inundações, etc) que figuram em primeiro plano nas preocupações de políticos e organizações sociais refletindo um raciocínio estreito na compreensão de uma problemática maior; quaisquer outras ações são vistas como desperdício, ou seja, remoções concebidas por razões de valor urbano espacial são consideradas um luxo acadêmico irresponsável. Esta é nossa realidade.



PROPOSTA FÍSICA

Redefinição da malha viária
Sobre uma leitura mais abrangente da área trata-se de identificar e estabelecer uma nova legibilidade das conexões viárias nas suas diferentes hierarquias permitindo a conexão desta área crítica com a rede estrutural da região e as novas locações das centralidades (Córrego Antonico e Córrego do Brejo) considerando os aspectos urbanos espaciais e geográficos num concerto coerente.
As remoções necessárias serão substituídas por novas construções para habitação, serviços e comércios, estabelecidas no mesmo local das remoções. Sobre o Córrego do Brejo as remoções darão lugar a um parque que estará em continuidade à reserva existente.

A área central
Nesta área, onde ainda predomina o traçado viário original, e onde se verifica com clareza o compromisso cidadão com o espaço público com o qual se relacionam, optou-se por remoções com o objetivo de restabelecer e multiplicar novas frentes urbanas com espaços públicos hierarquizados que em conseqüência estabeleçam sentido às vielas de acesso ao interior das quadras. Acreditamos que esta estratégia induzirá a uma autotransformação das construções nas áreas internas das quadras.
Neste mesmo espaço de remoção serão implantadas as novas habitações recuperando as ligações sociais existentes, mas sobre um suporte urbano de leitura renovada.

 

Os fundos dos vales
Áreas com maior dificuldade de intervenção, assim como de risco de desabamentos e inundações. O projeto propõe a remoção total das habitações assentadas nos fundos dos vales (Grotão e Grotinho) e em altas declividades, acentuando dessa forma a leitura da geografia e transformando-se em eixos urbanos visíveis do conjunto e gerando áreas verdes com equipamentos de lazer. (1)

Novos Blocos de habitação em contraposição às curvas de nível permitem uma alta densidade com até oito andares através de dois acessos em níveis diferentes, portanto, sem necessidade de elevadores. Estas habitações estarão restituindo à população removida os laços sociais existentes agora sobre espaços urbanos de nova identidade.

Os acessos às áreas verdes dos vales estão previstos através de escadas e pátios que dividem os blocos propostos e que atuarão como contenções das altas declividades destes setores de ocupação.

Novas edificações para habitação
Os conjuntos de habitação propostos darão uma nova ordem urbana gerando mais um bairro peculiar ao tecido da cidade.
As ações derivadas das estratégias anteriores representam um total de remoções de domicílios da ordem de 15% do total, isto supõe que o projeto deve contemplar a provisão de aproximadamente 3.000 novas habitações. Foi descartada a possibilidade de utilização dos modelos de habitação popular utilizados habitualmente pela administração pública por serem preconcebidos e não responderem com coerência à hipótese de cidade gerada na leitura da própria área de estudo.
Foram desenvolvidos quatro grupos de tipologias habitacionais para responder às outras tantas condicionantes de localização.

Edifícios para a área central;
Edifícios para as encostas;
Edifícios para os fundos de vale;
Conjunto de edifícios para as remoções excedentes.

O TERCEIRO TERRITÓRIO (1)

Esta nova estrutura de intervenção se intersecta com à existente gerando um resultado marcadamente diferenciado se o comparamos à uma leitura urbana convencional. A realidade existente destas áreas jamais permitiria a aplicação de modelos de projetos urbanos localizados em áreas “formais” com uma ordenação a partir de uma legislação normativa. Portanto, a proposta se define como uma transformação sem destruição definindo assim estas operações estruturadoras de projeto como infiltrações de urbanidade, motores de urbanidade.


(1) Bases para uma Instrumentação de ações de urbanização nas ÁREAS URBANAS CRÍTICAS, Héctor Vigliecca, 2007


URBANIZAÇÃO DO COMPLEXO PARAISÓPOLIS
Local: São Paulo/Brasil
Data do Projeto: 2004-2006
Área de Intervenção: 100 Hectares
População: 80.000 Habitantes

Arquitetura e Urbanismo Vigliecca&Assoc: Héctor Vigliecca, Luciene Quel, Ruben Otero, Ronald Werner Fiedler, Neli Shimizu, Lilian Hun, Thaísa Folgosi Fróes, Ana Carolina Damasco Penna, Rodrigo Parra Munhoz, Gabriel Azevedo Farias, Manuela Fernanda Marques Cabral, Administração: Paulo de Arruda Serra, Luci Tomoko Maie, Colaborador: Ursula Troncoso

Engenharias: Hagaplan – Sondotécnica

PRÊMIO DE MELHOR PROJETO DE INTERVENÇÃO URBANA 2005-2006 PELO INSTITUTO DOS ARQUITETOS DO BRASIL – SÃO PAULO