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Habitação em São Paulo

Maria Ruth Amaral de Sampaio, Paulo Cesar Xavier Pereira; Ensaio Fotográfico: Kristine Stiphany //

A METRÓPOLE PAULISTANA sempre teve parte de sua população vivendo em condições precárias de habitação. Hoje, esta precariedade atinge proporções nunca imaginadas, seja do ponto de vista de ausência de serviços de infra-estrutura, seja considerando-se as condições de segurança do imóvel, como risco de desmoronamento, de inundação, de incêndio devido a ligações elétricas precárias, além do perigo de se contrair moléstias infecciosas decorrentes do acúmulo de lixo e de condições insatisfatórias de higiene.

Persiste igualmente o perigo de contágio devido à promiscuidade decorrente do acúmulo de pessoas num diminuto espaço físico, sem condições de salubridade e, atualmente, de poluição com resíduos industriais e contaminação com material radioativo. Considerando-se a habitação não somente em relação às condições do imóvel em si, mas também no que se refere a seu entorno e ao que ele disponibiliza em termos equipamentos de saúde, educação e cultura, lazer, transportes, vemos que a precariedade habitacional abrange contingentes ainda maiores da população. Essa situação não é nova. No início da formação da São Paulo moderna, a precariedade atingia sobretudo a população mais pobre, mas atualmente envolve camadas sociais cada vez maiores da população. Relatórios produzidos por autoridades nos anos finais do século XIX apontavam para uma situação habitacional semelhante, enfatizando a precariedade dos cortiços infectos e insalubres que circundavam bairros centrais da cidade. Temia-se, à época, que epidemias e pestes se espalhassem e atingissem toda a população. Tanto que a virada do século XIX para o XX ficou conhecida como um período de predomínio do higienismo e do sanitarismo, em que as autoridades, entre outras coisas, recomendavam a demolição de habitáculos, estimulando a construção de habitações fora do perímetro urbano. Eram orientações que, oferecendo incentivos convidativos à iniciativa privada, faziam com que se articulassem interesses dispostos a colaborar na busca de uma solução da questão. Muitos aceitaram o convite e uma verdadeira “teia” de relações entre esses interesses e a administração pública foi realizada. Esta última, naquele momento, chegou a modernizar a área central; mas, ainda hoje enreda acumulação na indústria da construção e preocupação social da habitação fazendo persistir ambigüidades e contradições essenciais na construção da cidade.
 

Assim, a administração pública “não só delegava à iniciativa privada as providências relacionadas à ocupação do espaço urbano, como manifestava a inten-ção de ‘segregar’ a população trabalhadora em áreas distantes do núcleo central da cidade” , o que permitia aos empresários imobiliários daquela época atuarem livremente conforme seus interesses. Tanto que o posterior crescimento da cidade foi estabelecido sob o comando dos interesses da valorização imobiliária, que usaram e abusaram da propriedade da terra urbana como reserva de riqueza. Em conseqüência disso, a “expansão da área urbana foi muito superior à que seria necessária para abrigar a população e os serviços urbanos”. Transcorrido o século XX, a situação agravou-se, a cidade de São Paulo não é mais habitada por centenas de milhares de pessoas e no dinamismo de sua centralidade passou a envolver uma população que alcança dezenas de milhões que não mais se concentram numa área central, mas se espraiam numa grande região cujo aglomerado é, freqüentemente, considerado como sendo esta mesma cidade .

Hoje a área urbanizada corresponde a 2.139 km2, ou seja, algo em torno de 146 mil quarteirões (em 1988 essa mesma área era de 436 km2). Nela, as habitações precárias encontram-se não somente nas áreas da franja periférica, em loteamentos irregulares, desprovidos de urbanização e construídos pelo próprio morador como foi freqüente antes dos meados do século XIX no município de São Paulo. Logo após meados do século XX acelerou-se o surgimento das favelas, associado ao agravamento da situação habitacional nos anos de 1970. Tanto que se “até 1973 a porcentagem da população favelada sobre o total do Município correspondia a 1%, esta parcela elevou-se a quase 8% em 1987, ou seja, em mais de 1.000%, enquanto a população de São Paulo cresceu 60%”. Na década seguinte, em áreas tradicionais da cidade, passaram a estar presente não somente os velhos cortiços em prédios defasados e congestionados, mas também edifícios modernos eu se tornaram precários precocemente, seja pela conservação, seja pelo uso inadequado, o que veio a originar os chamados cortiços verticais. Nessas condições ficava evidente que parte da população só encontrava habitação em terreno ou edifício precários, algumas vezes apenas se fossem invadidos.


Mas é preciso enfatizar que todas estas formas de precariedade, sobretudo as mais significativas, como as que passam pela invasão para resolver o lugar de moradia, ficaram reforçadas no município que impõe sua centralidade e empresta o nome a essa região. Dando ênfase à discussão das situações novas e mais graves, este trabalho vai tratar da habitação paulistana a partir dos anos de 1970, e esse recorte temporal tem a ver com uma obra clássica que marcou os estudos sobre a cidade no final do século XX: São Paulo – 1975, crescimento e pobreza, resultado de um estudo promovido pela Pontifícia Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, a qual indicava uma lógica na desordem estabelecida pelas condições crescimento e de existência urbana, ao focalizar o contraste exacerbado entre a acumulação e a pobreza apesar de todo o progresso de São Paulo. Por essa lógica afirmava-se que as formas de produção e distribuição da riqueza, bem como a própria organização do espaço, da infra-estrutura e dos serviços urbanos, determinavam a qualidade de vida da população da cidade. Por ela se explicava que existia um endereço preferencial para os trabalhadores: as casas precárias e distantes onde se fixavam como um resultado lógico de produção dos loteamentos. A força dessa explicação, na época, levou a substituir, no cenário urbano, a noção sociológica de marginalização ou de exclusão social pelo “que será designado ‘periferia’: aglomerados, clandestinos ou não, carentes de infra-estrutura, onde vai residir a mão-de-obra necessária para o crescimento da produção”.


O estudo ressaltava que a distribuição espacial da população na cidade reforçava as desigualdades advindas da industrialização. Deixava claro que na aparente desorganização da cidade se encobria a real organização da sociedade. Nos bairros periféricos, utilizando a chamada autoconstrução, ou nos tradicionais cortiços e nas favelas, estava concentrada a precariedade habitacional e registrados os momentos distintos e as formas disparatadas de ocupação do solo. Ficava visível no mapa da cidade o crescimento de seu traçado irregular e o desconexo de seus espaços vazios e ocupados, em que essas concentrações de pobreza, desprovidas de quase tudo, eram explicadas pela ausência do poder público na produção de formas mais racionais de ocupação do solo, o que permitia à iniciativa privada agir com grande desenvoltura, visando principalmente ao ganho imobiliário, combinando o lucro e renda. “A ação governamental [...] e os investimentos públicos vieram a colocar-se a serviço da dinâmica de valorização-especulação do sistema imobiliário-construtor”.


Poder-se-ia afirmar que até meados dos anos de 1980 predominou em São Paulo o padrão periférico de crescimento da cidade, um padrão que estava associado à hegemonia da solução do problema da moradia através da produção doméstica da casa em loteamentos de periferia. Nestes anos, houve uma mudança na dinâmica socioespacial que até então tinha permitido à população mais pobre construir sua casa própria, por meio do crescimento extensivo e desordenado da cidade baseado no tripé composto pelo: loteamento/autoconstrução/moradia na periferia. Assim, o objetivo deste texto é discutir a hipótese de que as transformações no panorama da solução habitacional, a partir de meados dos anos de 1970, explicitam uma mudança na hegemonia do padrão de crescimento da cidade. Esta crise acompanha a redução da oferta e, principalmente, o aumento de preços dos lotes, mesmo dos mais distantes, alterando o padrão e a lógica imobiliária até então predominantemente periférica na produção habitacional em São Paulo. A manifestação mais evidente dessa alteração, hoje, não é exatamente o seu esgotamento, mas a recriação de “brechas”, onde essa dinâmica imobiliária pode sobreviver, nas “fronteiras”, entre municípios da região metropolitana.


Do ponto de vista da análise da precariedade habitacional, esta discussão procurara mostrar que a rearticulação das formas de produção imobiliária, levando à retração do padrão imobiliário extensivo (ou periférico) e, simultaneamente, à aceleração do padrão imobiliário intensivo (central ou de adensamento), reforçou as desigualdades existentes e criou novas desigualdades, apesar de inovações urbanísticas e do surgimento de novos empreendimentos imobiliários tanto nas áreas tradicionais da cidade como em áreas novas. Deste ponto de vista mudou a maneira de segregar a população, tornando ainda mais desigual e precária as condições de habitação dos paulistanos. O que faz com que, para a maioria da população, a metrópole fique ainda mais excludente e torne mais distante a possibilidade de se obter uma moradia digna.


Para uma moradia digna: conceito e panorama atual
O direito à moradia digna é garantido pelo artigo 6 da Constituição da República. O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, tratando dos objetivos da política municipal de habitação, em seu artigo 79, parágrafo único, esclarece o seu significado: “moradia digna é aquela que dispõe de instalações sanitárias adequadas que garantam as condições de habitabilidade, e que seja atendida por serviços públicos essenciais, entre eles: água, esgoto, energia elétrica, iluminação pública, coleta de lixo, pavimentação e transporte coletivo, com acesso aos equipamentos sociais básicos”.


As prioridades da política habitacional para a Prefeitura de São Paulo são as seguintes: moradia como direito social, prioridade para baixa renda, articulação da política habitacional com a política urbana, participação popular e controle social, estímulo à autogestão, respeito ao meio ambiente, diversidade de projetos e programas, descentralização, subsídios para baixa renda e criação de novas fontes de recursos.


Essas prioridades deixam claro que a administração municipal aceita que a maioria do que se entende por habitação precária está consolidada e priorizará a regularização, qualificação e reurbanização de áreas com envolvimento dos habitantes de baixa renda. Nisso ela difere de administrações anteriores, que procuraram priorizar a construção de domicílios novos para essa população. Apesar dessas prioridades, o número de moradores em habitação precária em São Paulo é surpreendentemente semelhante ao total de habitantes das maiores cidades brasileiras, ultrapassando a ordem de um milhão de habitantes. Essa concentração da precariedade é significativa, tanto que, numa escala demográfica, essa massa de paulistanos seria o décimo terceiro município do Brasil. É uma massa que supera a população total da maioria das capitais e dos maiores municípios paulistas. Isso poderia não surpreender quando se verifica que ela teve, na última década, um crescimento maior do que a população total do município em qualquer dos seus subtipos: favelados, encortiçados, domicílios improvisados e moradores de rua.


Esses dados revelam uma situação preocupante, que facilmente pode ser associada ao persistente empobrecimento da população paulistana nas últimas décadas.

Cortiços e habitações precárias verticalizadas  Um dos mais recentes estudos sobre os cortiços na cidade de São Paulo comenta que dentro do espectro dos moradores de baixa renda, os moradores de cortiços enfrentam uma das situações mais críticas do ponto de vista físico-espacial e socioeconômico na atual conjuntura habitacional.

O menor interesse pelos cortiços tanto por parte das autoridades como dos estudiosos, deve-se em parte à inserção dos cortiços na malha urbana, ocasionando uma menor visibilidade do que as favelas e os loteamentos precários. A partir dos anos de 1980 é que se começa a notar uma maior concentração de cortiços em algumas regiões da área central e também um maior interesse dos estudiosos pelo tema. São Paulo, como outras grandes cidades nacionais ou internacionais, não conseguiram escapar do problema de deterioração de parte de sua área central. A importância histórica do velho centro paulistano não foi suficiente para evitar que, nas últimas décadas do século XX, gradualmente, começasse a acontecer um processo contínuo de mudança de seus ocupantes. Grandes empresas, bancos, comércio de luxo, hotéis, equipamentos de lazer deslocaram-se para outras áreas da cidade, inicialmente para o espigão da Paulista, em seguida descendo pelos jardins em direção à Faria Lima, e hoje dirigindo-se para as margens do rio PiMARIA nheiros. As finanças, o consumo, o entretenimento e sobretudo o interesse imobiliário conduziram esse duplo processo de declínio e ascensão de novas localidades, decorrente de um conjunto de fatores como congestionamento de tráfego, dificuldade de acesso, criação de áreas de pedestres e poluição, ocasionando abandono dos imóveis e conseqüente desvalorização imobiliária.

Entre os Censos de 1991 e 2000, os distritos da Sé e República perderam um total de 17.418 moradores. Hoje cerca de 67 mil moradores vivem nessa área, 22% menos que no início da década de 1990 (16). Os dados sobre a população moradora em cortiços também são imprecisos, pois as diferentes pesquisas, feitas com metodologias diversas, apontam números e porcentagens diferentes para a população encortiçada paulistana. Os dados disponíveis mais atualizados resultantes de pesquisa feita pela Fipe em 1996, indicavam seiscentos mil encortiçados. Aqui, como em outros casos, a diversidade dos dados torna difícil a opção por uma ou outra fonte. A postura da municipalidade com relação ao tratamento a ser dado aos cortiços sempre foi a da remoção e somente a partir do triênio 1989-1992, com a administração Luiza Erundina, uma nova política começou a ser adotada, com a proposta de fixação da população encortiçada em seu local de moradia.

No âmbito do governo estadual, a CDHU, desde os anos de 1980, desenvolveu interessante estudo sobre “aluguel de interesse social” destinado principalmente aos moradores das áreas centrais da cidade. Esse trabalho, entretanto, ficou durante um bom tempo sendo planejado e só recentemente está sendo retomado. Não podemos ao falar de cortiços deixar de mencionar a Lei Moura, nem de ressaltar que nas últimas décadas tem se observado a presença de cortiços também na periferia, que significa uma forma de o proprietário autoconstrutor ampliar sua casa para aumentar seu orçamento através do aluguel de cômodos. A ocupação e as invasões de imóveis vazios, principalmente nas áreas centrais da cidade ocorridas nos últimos anos, mostram uma outra forma de habitação coletiva precária, que não seria propriamente cortiço por não ser destinada ao aluguel, mas que apresenta as demais características dessa modalidade habitacional. Merece destaque pela solução adotada, trabalho participativo resultando em projeto de requalificação do imóvel envolvendo mudança de uso, de edifício invadido, público, desocupado durante sete anos Assim, a população moradora de cortiços, verticais ou não, é espoliada pelos riscos da promiscuidade, da falta de higiene, acúmulo de lixo, perigo de incêndio devido a instalações elétricas improvisadas, mas também pela intensificação da espoliação imobiliária, que eleva os preços da habitação, mesmo nas faixas menores do mercado.
 

As conclusões de ontem e de hoje 
Não faltam estudos e propostas que possam vir a contribuir para minorar a preocupante questão habitacional em São Paulo, sejam as provenientes dos múl- tiplos agentes que interferem na questão, seja a contribuição dos especialistas de variadas formações que refletem sobre o problema. A Prefeitura, por sua vez, com o novo Plano Diretor e o Estatuto da Cidade, dispõe hoje de instrumentos legais e urbanísticos que facilitariam a implantação de programas destinados às moradias sociais. Enfatizamos que para a população carente, a possibilidade do subsídio habitacional deve ser considerada, uma vez que a moradia deve fazer parte da política social contra a pobreza.

O empobrecimento é um processo que acaba por impedir que a pessoas tenham estruturas familiares com capacidade suficiente para desenvolver um projeto de vida digna na sociedade contemporânea. Ainda mais se assumirmos que a pobreza – que pode trazer consigo a marginalidade e criar obstáculos quase intransponíveis para o acesso às oportunidades – deveria ser responsabilidade do poder público, que por sua vez deveria criar condições para o desenvolvimento e a inserção social, estando aí compreendido acesso à moradia digna. Mas, neste caso, é importante que o poder público possua novos instrumentos legais e urbanísticos para atuar no sentido de fiscalizar, controlar, adequar e direcionar a produção imobiliária a fim de que o subsídio habitacional tenha um caráter social e não seja apenas uma maneira de aumentar o poder aquisitivo e sustentar preços artificialmente elevados no mercado. A indagação que permanece é o quão válida seria para os dias atuais algumas das conclusões sobre o crescimento e a pobreza que se delinearam, desde os anos de 1970, para a cidade de São Paulo. Resta saber se as oportunidades abertas pelo desenvolvimento econômico da cidade podem se transformar, em certos casos, em melhoria das condições de vida de parcela da população, do ponto de vista coletivo. É conhecido que o desenvolvimento recente de São Paulo vem significando um aprofundamento e perpetuação das desigualdades existentes.

Hoje, o desenvolvimento da cidade sob a globalização não abre oportunidades de nível e nem as condições necessárias para abrigar a sua população com dignidade. Trata-se de um desenvolvimento com novas formas de produção, mais espoliativas e de caráter menos integrador em que a melhoria da condição urbana conseguida, ao contrário do que seria desejável, torna a cidade ainda mais excludente. Nesse sentido, o recente crescimento da cidade de São Paulo tem significado não só a perpetuação das antigas diferenças socioespaciais, mas também sob uma nova lógica imobiliária, que tem levado à intensificação e à hegemonia de formas de produção imobiliária que mais reforçam a desigualdade e a segregação. De maneira que, hoje, apesar do desbloqueio da iniciativa social e política das classes trabalhadoras, conseguindo eleger seus representantes para os mais variados cargos da administração pública, se não houver um real deslanche das forças que conduzam à produção da cidade e da habitação digna continuar-se-á vivendo numa São Paulo de condições urbanas menos humanas e cada vez mais estranhas, porque se manterá impulsionada pela lucratividade, sempre maior, a eterna busca do capital.