0
ARCH+ news

Intervenções estruturadoras em rede para São Paul

Alexandre Delijaicov, Marcos L. Rosa //

Marcos L. Rosa entrevista Alexandre Delijaicov, arquiteto da EDIF – Departamento de Edificações – escritório que desenvolve projetos de edifícios públicos do município de São Paulo. Delijaicov é um dos arquitetos responsáveis pelo projeto dos CEUs, construídos entre 2002 e 2004, junto com André Takiya e Wanderley Ariza.

Marcos L. Rosa:
“Os CEU querem inaugurar uma nova urbanidade para seus bairros […] buscam identificar e transformar a situação territorial da área onde eles se instalam.” (1)

CEU significa Centro Educacional Unificado. Entre 2000 e 2004, representam a execução de uma idéia que tem suas raízes em 1920: a arquitetura das escolas como elementos estruturadores na escala urbana. No século XXI, CEUs foram precisamente implantados em um tecido urbano existente caracterizado pela ilegibilidade e exclusão – uma realidade de desigualdade social em regiões periféricas de São Paulo. Estas intervenções ambicionam reorganizar um território fragmentado, incentivando o contato humano, dotando-o de equipamentos capazes de estimular o encontro.

De que forma se constrói um pensamento de redes aplicado à cidade e ao desenho urbano? Como os CEUs exemplificam a aplicação de tais conceitos?

Alexandre Delijaicov:
Para começo de conversa, tudo isso está ligado a uma arquitetura que chamamos de arquitetura da cidade. Mais apropriadamente dizendo, a arquitetura dos espaços de propriedade pública da cidade. Não só os espaços de uso público e coletivo (que podem ser de propriedade privada e de uso coletivo), mas toda a construção do meu argumento – aquilo em que acredito – ligado à arquitetura da cidade, me referindo à arquitetura dos espaços públicos da cidade, empreendimentos públicos. Quais são esses espaços? Eu acho que para a gente definir nessa conversa, apesar de visceralmente interligadas, podemos definir três frentes: a primeira frente, os sistemas de redes integradas de infra-estruturas urbanas e infra-estruturas territoriais. A segunda frente, os sistemas de redes de equipamentos públicos municipais (da cidade): aqueles equipamentos que recebem o cidadão desde suas primeiras semanas de vida até a construção de todo seu caráter filosófico e de cidadão, de seu ser político, dele como um agente, um ator e ele se reconhecer no outro como um agente transformador do seu próprio lugar, já que a arquitetura que nos interessa é a arquitetura do lugar, a construção de nosso endereço. Esses equipamentos (do berçário à pós-graduação, o centro comunitário, a casa de cultura) essa rede de equipamentos é que vai construir a constelação de redes, formando um mosaico dos espaços constituintes desse público da cidade. A terceira frente é um espaço impregnado e presente em tudo, como dizem vários arquitetos: a cidade é nossa casa. Como frente pública: a habitação produzida pelo poder público municipal. A habitação da cidade para a cidade, que não deixa para trás um olhar atento à unidade ou conjunto de unidades habitacionais vinculadas à(s) rede(s) de infra-estruturas urbanas.



Subdividindo tais redes, poderíamos reconhecer três primordiais básicas. A espinha dorsal da infra-estrutura, os rios: na história da humanidade, desde a revolução da agricultura, quando o homem colocou um olhar sobre a natureza, percebendo o regime das chuvas, atuando como construtor de rios artificiais. Inerente ao homem é a idéia de construção do território a partir da água. Ou seja, um construtor de rios artificiais, um construtor de canais. Toda essa convergência de canais de irrigação e drenagem faz com que possamos nos inventar e inventar nosso lugar – a nossa geografia. A casa começa com a invenção do canal. Uma primeira infra-estrutura. Nesse aspecto, a espinha dorsal das infra-estruturas é a água.

O outro tripé dessa arquitetura das infra-estruturas é o espaço ligado à questão da mobilidade urbana. Se no saneamento ambiental o elemento-chave é a água e o elemento arquitetônico, o canal, na mobilidade, a gente pode dizer que o elemento-chave é o pedestre. Em contraposição, nesses 80 anos de urbanismo rodoviarista galopante, temos cada vez mais a consciência de morar perto: morar e trabalhar perto, sem sermos coadjuvantes de uma movimentação inconseqüente – a imagem da cidade de fluxos cinéticos, movimentação de uma horda de trabalhadores para lá e para cá para dar sentido de desenvolvimento e progresso, quando na verdade, trata-se de um bando de pessoas sem perspectiva, participantes de uma sociedade de consumo inconseqüente. Cada vez mais percebemos que é importante construir um espaço de convivência e morar perto e fazer com que a mobilidade urbana, em contraposição ao fluxo, valorize o percurso. O estar e não o passar. Valorize o estar nas esquinas: o ponto de encontro e não a encruzilhada. O passeio público. As calçadas. O projeto de mobilidade urbana que priorize o pedestre e depois os veículos urbanos não motorizados. Em São Paulo, mais de um terço das viagens feitas ao dia são feitas a pé. Ainda assim, não há projeto de passeio público.

O último tripé desses sistemas integrados de rede e da arquitetura das infra-estruturas seria o transporte público. Em meu ponto de vista, aquele que dá dignidade ao cidadão são os trilhos urbanos: o bonde (de baixa capacidade), os trens (de média capacidade) e o metrô (de alta capacidade). A ferrovia ordena o território. Para se construir uma linha férrea é necessário projeto.


Estruturação de uma rede para São Paulo: Anísio Teixeira –
construção da arquitetura das redes visceralmente interligadas:
a arte de construção do projeto coletivo

No Rio de Janeiro surgem alguns intelectuais, o Anísio Teixeira (um grande educador brasileiro) e o Afonso Eduardo Reidy, arquiteto brasileiro pouco lembrado que foi sempre um servidor público, em um escritório público de projetos, que projetava o tripé do qual eu falei - a arquitetura de infra-estruturas urbanas, a arquitetura de equipamentos públicos e a arquitetura da habitação social, integrados. Por exemplo, o conjunto habitacional do Pedregulho que tem no embasamento o mercado municipal, a biblioteca pública, etc. Uma coisa maravilhosa que é uma visão da arte de construção do projeto coletivo.

Em 1948, no Brasil, a promulgação dos direitos humanos foi um momento muito importante. Anísio Teixeira e um grupo de jovens arquitetos que trabalhavam ou estavam muito ligados às idéias desenvolvidas no Rio de Janeiro, vieram para São Paulo, junto com Hélio Duarte para implantar o conceito de redes: a rede de escolas públicas municipais. Em 1948, montou-se uma equipe (Comissão Executiva do Convênio Escolar), um convênio entre o Estado e o Município de São Paulo para projetar e construir 50 escolas-parque. Seriam projetadas as escolas-parque e escolas-praça nos bairros da periferia daquela época, os bairros operários. No projeto pedagógico de Anísio Teixeira a criança ficava o dia todo na escola, questionava-se qual era a universidade necessária do berçário à pós-graduação. Propunha-se a formação do cidadão com sociologia, filosofia, arte-educação, transformando as escolas num museu do lugar, o que valorizaria a geografia física do lugar e também a humana. Havia todo o aspecto de centros condensador de cultura, o que hoje se chama no ministério de pólo de cultura. No fundo cada escola teria um caráter de casa de cultura. Muito bonita a idéia. Cada aluno e cada professor teria esse estímulo para ser um produtor cultural e educativo. A arquitetura do edifício estaria ligada à arte pública. A arquitetura pública era reconhecida como uma cultura artística. A construção fazia parte de uma constelação de artes públicas na rede, desenhada na geografia da cidade. Nessas cinqüenta escolas de 1948, não só deveria haver um museu, mas também a escultura da praça, feita pelos alunos e professores, artistas. Mas as visitas deveriam ser feitas pelos moradores desse cinturão periférico. A escola-parque era um pólo de rede. Gravitando nesse campo estariam as escolas-classe. As distâncias compatíveis entre os equipamentos eram as do percurso dentro desse campo (400 ou 600m) de acordo com os equipamentos públicos.

Paulo Freire foi um grande educador, como Anísio Teixeira. Trabalhou com Anísio e com um grande intelectual brasileiro (antropólogo), Darcy Ribeiro, que escreveu “O Povo Brasileiro” e também “A Universidade Necessária”. Paulo Freire fala sobre a cidade educadora. Foi secretário da educação, em ocasião em que se organiza no escritório público municipal (EDIF). A partir de então se começou a pensar dentro de EDIF a idéia do edifício público como estruturador do desenho da cidade. Dentro disso, fomos diagramando e redescobrindo nossa história. Em nossa experiência, fomos redescobrindo isso tudo e começamos, intuitivamente construindo o projeto da Vila Mara. Intuitivamente, construímos a praça de equipamentos, simultaneamente construindo conceitualmente o projeto, redescobrindo quem foi Hélio Duarte, ao longo de 18 anos. Queríamos dar uma lógica, coordenar os projetos que chegavam segundo a demanda. Agrupar. Queríamos dar um nexo, ter uma coordenação de gestão pedagógica entre eles e, mais do que isso, uma configuração arquitetônica de modo a ter uma configuração de um conjunto arquitetônico harmônico, que criasse entre os blocos unidade ou diálogo, tensão. Poderia ser uma unidade óbvia (por exemplo uma marquise), ou o elemento conector mais importante seria o tal do vazio, o vazio-conteúdo . Como para Luis Kahn, a praça de estar sem teto para a comunidade. O vazio cria uma tensão, como na Praça de São Pedro de Roma - os edifícios configuram aquele vazio em praça seca, o vazio com conteúdo, programado (em nosso projeto a praça de equipamentos, a praça do teatro).

Fizemos então alguns ensaios, nessa época do Paulo Freire e da prefeita Luiza Erundina: o Vila Mara, três conjuntos habitacionais: o conjunto habitacional garagem, o conjunto habitacional sítio do Jaraquá (onde ensaiamos duas praças de equipamentos) e depois o Conjunto Habitacional Inácio Monteiro, que deu origem ao programa CEU. Nossa idéia, enquanto escritório público de projetos, era valorizar uma política de estado, e não projeto de governo, visando a uma continuidade e não a uma ruptura consecutiva (a cada nova gestão).

A constituição de 1988 é um ponto primordial para ilustrar essa vontade de estruturar o território. A Constituição falava que algumas cidades (caso de São Paulo) deveriam ser divididas em subprefeituras. Daí surge a idéia da praça de equipamentos. Existiam nas cidades as administrações regionais e os distritos. Começamos a imaginar que as administrações regionais que se transformariam em subprefeituras deveriam ter uma arquitetura simbólica através da construção de uma arquitetura do lugar, um paço municipal. Seriam 31 subprefeituras, 31 paços municipais, 31 praças da prefeitura. A praça dessa subprefeitura seria uma grande plenária, onde a população discutiria (um ponto de encontro com equipamentos para a vizinhança). Os outros distritos teriam as praças de equipamentos, que não abrigariam a sede administrativa, mas o teatro municipal, biblioteca pública, piscinas públicas e assim por diante. Teríamos uma média de 3 praças de equipamento por subprefeitura. Aproximadamente 93 equipamentos estruturando a cidade de São Paulo, 93 endereços com outros equipamentos gravitando num raio de 2 km, configurando a visão de rede apresentada. Desenhar os espaços de ligação desses equipamentos valoriza os percursos e desenha a cidade. Esse trabalho vai identificando e dando dignidade para cada esquina, cada edifício. Vai conectando os prédios pelo vazio.


Implantes estruturadores, [Marcos L. Rosa]

Reconhece-se uma base conceitual anterior à execução destes projetos de extrema importância para se entender a natureza e o alcance da intervenção: os CEUs apresentam a maturidade e o passo mais recente dentro de uma longa história de interação entre arquitetos e educadores(2). Desenvolveu-se uma metodologia para a localização dos equipamentos, definindo-lhes, simultaneamente, como unidades locais de importância ao bairro e como uma ampla rede social organizada na escala metropolitana. Esse raciocínio ilustra o pensamento de um urbanismo em rede, aplicado a São Paulo.

Localizar: Estratégia para o implante. “Arquitetura do lugar”, “construção do lugar”, “construção arquitetônica do lugar.“(3)

“Arquitetura do lugar”
Alexandre Delijaicov usa o termo “Arquitetura do lugar” para designar localização. Além de representar a escolha do lugar, o termo faz referência ao método usado para indicar o endereço no qual o equipamento social deveria ser implantado: onde a falta da presença do estado e de serviços públicos era maior. O propósito final desse pensamento seria qualificar os espaços públicos em um lugar de encontro, de coexistência(4):

A "arquitetura do Lugar", o endereço, é usada como parâmetro para a intervenção na escala metropolitana, com o objetivo de proporcionar bem-estar para as regiões mais pobres. Para cumprir este objetivo, cada subprefeitura deveria ter uma determinada quantidade de equipamentos urbanos. As subprefeituras totalizam 31. Este número aliado aos dados sobre a escassez de infra-estrutura e equipamentos elege um critério de localização, apontando a lugares onde uma reestruturação territorial se faz possível a partir de intervenções pontuais.(5) Enquanto estratégia, define a praça como o ponto de encontro de vários equipamentos públicos.

O plano era construir essa rede em três fases: na primeira 21(6) CEUs seriam entregues, outros 24 na segunda, e na terceira fase, rearticulando quarenta e cinco unidades de equipamentos urbanos existentes - hoje desconectados do tecido urbano e sem qualquer significado como um espaço público de encontro, o "endereço" - tendo as suas paredes e barreiras físicas abertas e articulando-os com as suas comunidades. A partir dessa estratégia planejada, 96 equipamentos desta natureza seriam anexados à rede. Cada uma das 31 "cidades" (subprefeituras) teria 3 "equipamentos quadrados" ou 3 desses equipamentos urbanos, apoiando a reestruturação do território fragmentado.

A abrangência de tal intervenção pode ser demonstrada por simples números. Na primeira fase, que durou 18 meses, foram construídos 21 CEUs, com 14 equipamentos cada, totalizando 294 novas instalações públicas, localizadas nas zonas periféricas de São Paulo, onde esses equipamentos são mais escassos: A "arquitetura do programa" - do equipamento - torna-se a “arquitetura do lugar”. “O lugar se configura então C-E-U como Centros de Estruturação Urbana.” (7), que define o CEU como pólo estruturador do bairro e da periferia, de uma rede metropolitana.

“Construção do Lugar”
O conceito de "construção do Lugar" emerge do conjunto arquitetônico articulado pela praça: “Não seria um edifício para cada equipamento, mas um conjunto arquitetônico de dois ou três equipamentos que abraçariam, que desenhariam um núcleo vazio que seria a praça dela, e que abrigaria um conjunto de equipamentos urbanos. (...) A praça no sentido de ser uma sala de estar com teto na escala da comunidade” (8)

Esta definição da praça tem referência na cultura urbana brasileira: a praça (como elemento central e organizador) é uma unidade-chave do planejamento urbano, funcionando como o piso térreo, a superfície horizontal responsável pela estruturação de todas as outras instalações; uma referência a uma estrutura urbana encontrada em mais de cinco mil cidades existentes.

"Construção Arquitetônica do Lugar"
A existência de uma "arquitetura do programa" (refletida no CEU como 14 (9) equipamentos em 3 edifícios articulados pelo espaço público "praça") estimula as pessoas a viverem juntas no espaço público, a compartilhar e valorizá-lo como espaço comum. A justaposição de atividades não permite isolamento e define um novo terreno para a cidade. A citação "O projeto pedagógico quer atividades sincronizadas"(10) destaca o conceito de “formação do cidadão segundo o conceito de cidade educadora”(11), o desenvolvimento de um cidadão que se percebe como um agente de transformação no seu mundo.

A existência do CEU apóia a hipótese de elementos pontuais estruturadores de um território fragmentado (com o objetivo de reduzir o déficit social). Os critérios adotados para sua localização demonstram a leitura de um território identificado como fragmentado, e apresentam o claro objetivo de definir pontos estratégicos a partir dos quais se pode realizar uma estruturação em massa. Colocada em novos recortes geográficos, e re-enquadrada em realidades diversas, cada nova implantação estimula a redescoberta do Lugar pelo olhar dos seus habitantes, fazendo dele um ponto de referência na paisagem urbana, reconhecido como o ponto de encontro em cada vizinhança. Como um implante, ele se torna o ponto de contacto, reorganiza as relações humanas presentes em seus arredores: “o CEU constrói a identidade simbólica do lugar [...] Uma referência simbólica e de identidade iconográfica do lugar público.” (12) Insere, o que até então não existia nos bairros periféricos: “a oportunidade de você encontrar o outro, e introduzir dentro de uma contemplação uma vida ativa, de ação.”(13)


1 Anelli, 2004, p. 2
2 ibid., p. 2
3 Delijaicov, In: Mascare. 2004, p. 2.
4 Ibid., p. 8
5 CEU são projetos municipais comprometidos com a escala metropolitana. A localização dos equipamentos na periferia do município de São Paulo, reconhece a necessidade de governança metropolitana e estruturação dos territórios adjacentes, carentes de infra-estrutura adequada.
6 A única completada, dada a descontinuidade do projeto (como foi concebido) na gestão seguinte.
7 Delijaicov, in: Mascare. 2004: 10.
8 ibid., p. 8.
9 Cada CEU abriga 14 equipamentos, divididos em 3 edifícios, articulados por uma praça comum a todos eles: 5 instalações educacionais e culturais, 3 (biblioteca, teatro e casa de cultura). Na área externa: equipamento esportivo, piscina e parque municipal (skate, playground, árvores e esportes), um telecentro e uma padaria-escola (restaurante da comunidade nos fins de semana). Por último, o Conselho Gestor, estruturando todos os anteriores.
10 Delijaicov, in Mascare: 2004, p. 11
11 ibid., p. 7
12 ibid, p. 26
13 ibid, p. 27


BIBLIOGRAFIA
Anelli, Renato L. S.. Centros Educacionais Unificados: arquitetura e educação em São Paulo. Arquitextos, n.55.02. São Paulo. Portal Vitruvius. Dez.2004

Original published in: Anelli, Renato L. S.. Centri Unificati di Educazione a São Paulo, le scuole di São Paulo. In Casabella, n. 727, Milano, novembro 2004, p. 6-19.

Mascarenhas, Marisa Pulice and Salomão, Patrícia (Fundação Instituto de Administração). Interview with Alexandre Delijaicov, André Takiya, Wanderley Ariza e Rosana Miranda. CEU. November 2004.